capítulo 1 - da vizinha exorcista.
dormi mal, acordei pior. um gosto de meia suja no fundo da garganta, ainda ferida pelos excessos de cigarro. hoje foi o quarto dia sem nenhuma tragada.
meu pai me acorda, invariavelmente atrasado. abro os olhos e vejo um crucifixo, entre as grades de minha janela. são duas grandes ripas, a altura é de uns dois metros aproximadamente, frente ao céu escuro. ou meu pai errou horário, ou o dia está nublado? um crucifixo escuro, de fundo o céu nublado. estou mesmo atrasado.
acho que minha vizinha, cristã convicta e irritante, apelou em nossa guerra pessoal. nem as músicas caipiras evangélicas, nem as cantigas natalinas funcionam agora que subi com o som da sala para meu quarto. sua abordagem é mais direta: quer me exorcizar.
injusto, ainda não peguei pesado. só ligo o som alto quando o dela está ligado, com o volume também alto. acho que acredita que pode me catequizar com aquelas porcarias.
começo leve, com uns três ou doze technopops, depois coloco uns clássicos na minha setlist. quando até aí não funciona, entro em d'n'b e jungles variados. até hoje, não coloquei nada realmente do capeta, fui tolerante.
- marcello, sai dessa cama, ou não vai ter carona!
capítulo segundo - da merda.
dia ruim mesmo. um dedo do pé machucado, que ontem era azul, hoje é preto. ando como o quazímodo, mas certamente com menos estilo. minha garganta dói, no fundo dela o gosto ruim que não sai por mais que escove os dentes. fora um desânimo sem tamanho após uma noite insone, preocupado com outro tipo de dor.
à tarde, enquanto caminhava para o trabalho, ocorre algo inesperado e importante.
capítulo terceiro - da fatalidade do efêmero.
o caminho é diferente desta vez: vou pelo canteiro, no meio da avenida. hoje é dos dias que acabo sempre por me isolar. a cena é uma verdadeira tragédia pessoal cotidiana.
manco, suado, desanimado. olho para cima, buscando uma plantinha sobre o arco do antigo colégio público à direita. acompanho essa plantinha, que nasceu em local tão insólito, se desenvolver a cerca de quatro anos. ela significa pra mim. é minha esperança verde, me diz que nem todas as coisas mudam, que algumas estão sempre ali, que não cabe justificar o medo de perder tudo, algum dia.
mas mataram minha plantinha, aquilo me atingiu de verdade. ela não estava mais ali. no lugar, apenas um toquinho remanecente. um cotoco tão miserável como eu hoje.
por algum motivo qualquer, ou por acaso, sinto tentado a olhar para o outro lado da avenida. meus olhos encontram os olhos de meu ex-grande amigo, agora um fantasma. a última vez que nos olhamos diretamente assim já fazem meses, eu estava atravessando a rua com ganchos nas costas, ele atravessava no sentido oposto. senti que me julgava e condenava.
dessa vez, achei que sentia algo menor que a pena.
quando cheguei ao fim do quarteirão, olhei mais uma vez, e vi que ainda olhava pra mim. comentava algo com sua amiga ou namorada. imagino algo como:
- coitado. perdeu tudo na vida, esse menino. depois que a namorada o chutou, só caiu.
não sou miserável, minha vida não vai mal. mas aquele momento fui o pior dos homens. ou meninos.
e senti por minha plantinha.
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